Ditadura civil-militar no Brasil (1964 – 1985)
O golpe de Estado de
abril 1964 representou uma ruptura na legalidade democrática que existia no
Brasil desde 1946. A
ênfase que os militares, apoiados pelo bloco multinacional-associado, deram à
“caça as bruxas” procurava garantir a “revolução de 1964” (como propagaram os
militares). Essa ênfase recairá na necessidade de eliminar o “comunismo ateu”
do país e gerará disputas internas nas forças armadas. Os conflitos entre Estado e oposição, irá fechar as portas
à participação política por vias institucionais, impedindo que muitos jovens
prossigam seus estudos e sua vida legalmente. Nos anos seguintes, diversos
agrupamentos de esquerda rompem
com o “imobilismo” do PCB frente ao golpe e a ditadura. Influenciadas pelo
“foquismo” cubano ou pelo “maoísmo” chinês estas organizações preparam a
guerrilha rural pensando libertar o país da opressão da ditadura e/ou fazer uma revolução socialista no Brasil.
Como ressalta o sociólogo Marcelo
Ridenti havia no país, na década de 1960, a utopia de que era possível fazer uma “Revolução”. Essa “utopia” estava presente não só no ideário das esquerdas (armadas ou
não), mas inclusive no meio artístico e cultural. O contexto
internacional parecia corroborar com essa ideia: Revolução Cubana; Revolução
Cultural na China; Ofensiva do Tet no Vietnã, manifestações estudantis em
diversos países do mundo, entre outros, davam a sensação de que era possível…
Traçado o caminho, seria necessário
conseguir recursos e treinar militantes na luta armada nas cidades. De fato,
ocorreu que a luta armada não conseguiu se implantar no campo (com exceção da
Guerrilha do Araguaia do PC do B). Pior do que isso é a constatação de que o
aparato de repressão/informação/tortura que ditadura montou, para “matar uma
mosca com um martelo-pilão”, funcionou muito bem. Tortura física e psicológica,
prisões, informação/contra informação, infiltração de agentes da repressão ou
acordos que alguns militantes fizeram com os órgãos de repressão
acabassem por
destruir as organizações armadas.
Um exemplo disso é a morte, em 23 de
outubro de 1970, do segundo comandante da ALN (Ação Libertadora Nacional) assassinado pela repressão: o
militante e dirigente histórico Joaquim Câmara Ferreira (o “Toledo”). Desde a
morte de Carlos Marighella em novembro de 1969, a ALN poderia ficar
de sobreaviso em questões de segurança. Não foi o que aconteceu, pois “Toledo”
foi vítima da delação de um ex-militante, isto é, “caiu” por
causa de um acordo que este fez com a repressão, tornando-se agente infiltrado
na ALN.
Contexto histórico
A ditadura militar brasileira não foi um fato isolado na história da
América Latina. Na mesma época, regimes semelhantes nasceram de rupturas na
ordem constitucional de outros países no subcontinente, tendo as Forças Armadas
assumido o poder em acordo com a lógica da Guerra Fria.
O mundo estava dividido em dois grandes blocos. Um pólo era
comandado pelos Estados Unidos e o outro pela União Soviética. Essa divisão de
poder mundial teve como cenário de fundo o resultado da Segunda Guerra, com as
potências vencedoras dividindo o planeta em duas grandes áreas de influência.
Num tabuleiro de apenas duas cores, o Brasil permaneceu na órbita
da diplomacia norte-americana, assim como o restante dos países
latino-americanos. A partir de 1959,
a Revolução Cubana marcou profundamente a política
exterior dos Estados Unidos que, logo após a aproximação entre Cuba e União Soviética, anunciaram não mais tolerar insurgências que desafiassem sua hegemonia na região. Para garantir que os governos da região permanecessem
como aliados, os Estados Unidos apoiaram ou patrocinaram golpes militares de
exacerbado conteúdo anticomunista.
Os países da região que haviam participado com tropas na Segunda
Guerra Mundial, como o Brasil, lutando como aliados dos Estados Unidos e sob
seu comando militar, iniciando aí uma cooperação operacional que avançaria nas
décadas seguintes, gerando unidade de doutrinas, treinamento conjunto na
formação de quadros e estreita identidade ideológica. No pós-guerra, essa
divisão entre influência norte-americana ou soviética se estendeu pelos cinco
continentes. Ocorreram algumas iniciativas de independência em política e
diplomacia. Na América Latina, entretanto, essas iniciativas de
autodeterminação avançaram pouco. Prevaleceu até o final do século 20 a atitude de alinhamento
automático com as posições norte-americanas, com raras exceções.
Assim é que, no subcontinente, os anos 1960 e 1970 vão
contabilizar um nítido fortalecimento, no âmbito do poder político, das forças
que haviam resistido aos governos de orientação nacionalista dos anos 1950, como
o de Vargas, no Brasil, Perón, na Argentina e vários outros. Como regra geral,
os governantes das ditaduras latino-americanas buscam estreitar, no plano econômico, a associação com seus antigos
aliados do capital externo, sob tutela militar nacional, e incorporam
plenamente a estratégia norte-americana de contenção do comunismo, resumida pela "Doutrina de Segurança Nacional".
Com base nessa doutrina, foram decretadas no Brasil sucessivas
Leis de Segurança Nacional, de conteúdo draconiano, que funcionaram como
pretenso marco legal para dar cobertura jurídica à escalada repressiva
(tortura, execuções etc.)
O espírito geral dessas três versões da Lei de Segurança Nacional
indicava que o país não podia tolerar divergências internos e identificava a
vontade da Nação e do Estado com a vontade do regime (militar). Se o alvo
inicial eram apenas os opositores no plano partidário e na luta política
clandestina, de fato a lei terminaria fulminando também as liberdades gerais e especificamente a de
imprensa. Ao estabelecer que os jornais e emissoras de rádio e televisão deviam
contribuir para o fortalecimento dos objetivos nacionais permanentes, abria
caminho para proibi-los de divulgar críticas contra autoridades governamentais
porque não poderiam indispor a opinião pública contra elas, gerando animosidade
ou a chamada guerra psicológica adversa.
Ditaduras no Cone Sul
Esse contexto histórico regional trouxe, então, a generalização de
regimes políticos repressivos em todos os países do Cone Sul: Brasil (1964),
Argentina (1966 e 1976), Uruguai (1973), Chile (1973). O controle da classe
trabalhadora pautou-se por forte coerção sobre os sindicatos, quando não por
intervenções diretas e prisão ou assassinato das lideranças. Em quase todos os
casos, os partidos políticos preexistentes foram extintos e o parlamento
submetido a severas limitações, quando
não simplesmente fechado.
A Argentina passou por um primeiro governo ditatorial entre 1966 e
1973, mas foi no segundo período de regime militar, iniciado em 24 de março de
1976, que as cifras da violência repressiva atingiram patamares sem precedentes.
A recuperação da democracia, a partir de 1983, após o desastre nacional causado
pela aventura dos ditadores na Guerra das Malvinas, teve de considerar um espantoso saldo
de sequestros, torturas e assassinatos por parte de agentes estatais, quando os
Direitos Humanos foram violados em larga escala. Estima-se em cerca de 30 mil o
total de mortos e desaparecidos entre os que resistiram ao regime.
No Uruguai, que antes se orgulhava de ser um país de longa
convivência política democrática, os militares foram assumindo crescente
controle sobre as autoridades civis já no final dos anos 1960. Mantiveram J. M.
Bordaberry desde 1971 como presidente fantoche e passaram a exercer plenamente
o poder ditatorial a partir de junho de 1973
No Chile, a ditadura comandada por Augusto Pinochet instituiu a
violência de Estado como norma de conduta desde o primeiro momento do golpe
contra o governo constitucional, começando pela execução do presidente Salvador
Allende no próprio palácio presidencial de La Moneda , em 11 de setembro de 1973. O período em
que a Unidade Popular governou o Chile, entre fins de 1970 e setembro de 1973
tinha sido marcado por crescente ganhos dos trabalhadores e a ditadura Pinochet
(1973 – 1991) atacou esses direitos de forma violenta, aplicando o neoliberalismo de R.
Reagan (EUA) e M. Tatcher (Inglaterra).
Em meados da década de 1970, os regimes militares desses Brasil,
Chile Argentina Uruguai e Paraguai articularam uma integração operacional de
seus órgãos de repressão política para intercâmbio de inteligência e para
efetuar prisões, seqüestros, atentados com explosivos ou mesmo executar militantes
das organizações políticas que atuavam na resistência à ditadura em seus
respectivos países. Idealizada pelo coronel Manuel Contreras, chefe da DINA, a
polícia política de Pinochet, a chamada Operação Condor matou dezenas de
pessoas que eram inconvenientes para as ditaduras da América Latina.
No início do século 21, superados os governos repressivos dos
cinco países do Cone Sul, estão em andamento processos judiciais no Chile, na
Argentina, no Uruguai e mesmo no Paraguai, que buscam responsabilizar altas autoridades
e torturadores do período ditatorial naqueles países.
O Brasil é o único país do Cone Sul que não trilhou procedimentos
semelhantes para examinar as violações de Direitos Humanos ocorridas em seu
período ditatorial, mesmo tendo oficializado, com a Lei nº 9.140/95, o
reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas mortes e pelos
desaparecimentos denunciados.
Fases do Regime Militar no Brasil
O regime militar brasileiro de 1964 - 1985 atravessou pelo menos
três fases distintas:
a) A primeira foi a do Golpe
de Estado, em abril de 1964, e consolidação do novo regime.
b) A segunda começa em
dezembro de 1968, com a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5),
desdobrando-se nos chamados anos de chumbo, em que a repressão atingiu seu mais
alto grau.
c) A terceira se abre com
a posse do general Ernesto Geisel, em 1974 – ano em que, paradoxalmente, o
desaparecimento de opositores se torna rotina –, iniciando-se então uma lenta
abertura política que iria até o fim do período de exceção/ditatorial.
Na
fase inicial, o setor das Forças Armadas que prevaleceu na disputa interna para
comandar o aparato estatal foi o proveniente da Escola Superior de Guerra (ESG).
Inspirada no similar National War College norte-americano. A ESG nasceu
em 1949 sob o comando do Estado-Maior das Forças Armadas. Sua orientação era
marcada por forte ideologia anticomunista, que se traduziu na mencionada
Doutrina de Segurança Nacional, com base na qual se construiu o aparato capaz
de controlar toda a vida política no país e formar quadros para ocupar cargos
de direção no novo governo. O grupo de oficiais da ESG também montou o Serviço Nacional
de Informações (SNI), um dos pilares da ditadura, concebido pelo principal
teórico do regime, o general Golbery do Couto e Silva. A ESG e o SNI
desenvolveram um papel político fundamental na implantação e defesa do governo
de exceção.
A Doutrina de Segurança Nacional, idealizada em grande parte por
Golbery, foi uma tentativa de fundamentar conceitualmente a suspensão das garantias
constitucionais, a limitação das liberdades individuais, a introdução da
censura aos meios de comunicação e a repressão aos que se opunham por
meio de atividades clandestinas. A defesa do "cristianismo ocidental" foi usada como
pretensa inspiração dessa doutrina.
A Doutrina de Segurança Nacional se assentava na tese de que o
inimigo da Pátria não era mais externo, e sim interno. Não se tratava mais de
preparar o Brasil para uma guerra tradicional, de um Estado contra outro. O
inimigo poderia estar em qualquer parte, dentro do próprio país, ser um "nacional". Para enfrentar esse novo desafio, era urgente estruturar um novo
aparato repressivo. As Forças Armadas passaram a se adaptar para enfrentamento de uma guerra de guerrilhas.
Assim, já no final de 1969, estava caracterizada a instalação de
um aparelho de repressão que assumiu características de verdadeiro poder
paralelo ao Estado no país. Seus agentes podiam utilizar os métodos mais
sórdidos, mas contavam com o manto protetor representado pelo AI-5 e pela
autoridade dos mandatários militares, incluindo-se aí a suspensão do
direito de habeas-corpus, a formalização de decretos secretos, prisão
perpétua e até mesmo a pena de morte para opositores envolvidos em ações
armadas que tivessem causado morte.
Remanescentes do Grupo Permanente de Mobilização Industrial,
responsável pela articulação do setor empresarial nos preparativos do Golpe de
Estado de 1964, colaboraram financeiramente para a reestruturação do aparato
repressivo, inicialmente de forma semiclandestina.
O primeiro Ato Institucional, abril de 1964, desencadeou a
primeira avalanche repressiva, materializada na cassação de mandatos, suspensão
dos direitos políticos, demissão do serviço público, expurgo de militares, aposentadoria
compulsória, intervenção em sindicatos e prisão de milhares de brasileiros.
Entre 1969 e 1976,
a estrutura do sistema repressivo adquiriu o formato de
uma ampla pirâmide, tendo como base as câmaras de interrogatório e, no vértice,
o Conselho de Segurança Nacional. O SNI tinha sido criado em junho de 1964 para
recolher e processar todas as informações de interesse da segurança nacional.
Seu comandante, com status de ministro, mantinha encontros diários com o presidente
da República e tinha uma grande influência sobre as decisões políticas do
governo. Apesar do grande aparato montado, o serviço de inteligência não
conseguiu responder com eficiência às expectativas do governo num primeiro
momento. Para melhorar a eficácia repressiva, surgiu a necessidade de uma
integração completa entre os organismos da repressão, ligados aos ministérios
do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, à Polícia Federal e às polícias
estaduais. Em São Paulo ,
foi montada, em 1969, uma operação piloto que visava a coordenar esses
serviços, chamada Operação Bandeirante
(OBAN). Não era formalmente vinculada ao II Exército, mas estava, de fato,
sob a chefia de seu comandante, o general Canavarro Pereira. A OBAN foi composta
de efetivos do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, da Polícia Política Estadual,
do Departamento de Polícia Federal, da Polícia Civil, da Força Pública, da
Guarda Civil e até de civis paramilitares.
A experiência da OBAN como centralizadora das ações repressivas em São Paulo foi aprovada
pelo regime militar, que resolveu estender seu formato a todo o País. Nasceu
então o Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa
Interna, lembrado ainda hoje pela temível sigla DOI-CODI, que formalizou no âmbito do Exército um comando
englobando as três Armas.
Com
dotações orçamentárias próprias e chefiado por um alto oficial do Exército, o
DOI-CODI assumiu o primeiro posto na repressão política no país. No entanto, os
Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS) e as delegacias regionais da Polícia
Federal, bem como o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA) e
o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) mantiveram ações repressivas
independentes, prendendo, torturando e eliminando opositores, por meio dos
interrogatórios com torturas, das investigações sigilosas, da escuta
telefônica, do armazenamento e processamento de informações sobre atividades
consideradas subversivas (desde simples reivindicações salariais e pregações
religiosas, até as formas de oposição por métodos militares).
A resistência
Ao longo dos 21 anos de regime de exceção, em nenhum momento a
sociedade brasileira deixou de manifestar seu sentimento de oposição, pelos
mais diversos canais e com diferentes níveis de força. Já nas eleições de 1965,
adversários do regime venceram a disputa para os governos estaduais de Minas
Gerais e da Guanabara, levando os militares a decretar em outubro o Ato
Institucional nº 2 (AI-2), que eliminou o sistema partidário existente e forçou
a introdução do bipartidarismo: ARENA (Aliança Renovadora Nacional, partido
pró-ditadura) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro).
A União Nacional dos Estudantes (UNE) foi atingida com dureza já
nos primeiros dias do novo governo, quando a sede da foi incendiada na Praia do
Flamengo, Rio de Janeiro. O Movimento Estudantil começou a se manifestar com
energia a partir de 1965, em todo o País. A UNE desafiou abertamente a
proibição das entidades estudantis autênticas, imposta pelo regime. Essas
manifestações cresceriam até atingir seu auge nas grandes passeatas de 1968,
entrando em refluxo após a decretação do AI-5, em dezembro daquele ano, para
voltar a crescer novamente a partir de 1977. Em fevereiro de 1969, o governo
Costa e Silva chegou a baixar um dispositivo específico para reprimir a
oposição política e a atividade crítica nas universidades, o Decreto nº 477,
que previa o desligamento de estudantes, professores e funcionários envolvidos
em atividades subversivas.
Os sindicatos de trabalhadores, fortemente golpeados pelo regime
já nos primeiros dias de abril de 1964, conseguiram se reerguer gradualmente e
realizar importantes greves em 1968, em Osasco (SP) e Contagem (MG), retornando
a um patamar de fermentação discreta até atingir novo salto em 1978, quando no
ABC paulista,voltam as mobilizações de trabalhadores que dariam início à construção de
um novo sindicalismo no Brasil.
A área intelectual e artística representou outro pólo de resistência.
A música, o cinema, o teatro, a literatura, distintos segmentos da vida
cultural brasileira tornaram-se arena de contestação ao regime autoritário, agindo
muitas vezes como ousada trincheira que exigia o resgate da liberdade de
criação. O setor enfrentou, como represália, períodos de vigorosa censura e
mesmo a prisão de grandes expoentes artísticos, em especial nas semanas que se
seguiram à decretação do AI-5.
No contexto de endurecimento do regime, algumas organizações partidárias
de esquerda optaram pela luta armada
como estratégia de enfrentamento do poder dos militares. Nasceram diferentes
grupos guerrilheiros, compostos por estudantes em sua grande maioria, mas
incluindo também antigos militantes comunistas, militares nacionalistas,
sindicalistas, intelectuais e religiosos. Essas organizações político-militares
adotaram táticas de assalto a bancos, seqüestro de diplomatas estrangeiros para
resgatar presos políticos, atentados a quartéis e outras modalidades de
enfrentamento, o que, por sua vez, também produziu algumas vítimas entre agentes
dos órgãos de segurança e do Estado.
A escalada repressiva sobre os estudantes deu novo salto a partir
de 28 de março de 1968, quando policiais dispararam contra manifestação que
protestava pelo fechamento do
restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, matando o secundarista Edson Luís
Lima Souto. Ao funeral compareceram 50 mil pessoas, ocorrendo dezenas ou
centenas de prisões. Dias depois, a cavalaria da Polícia Militar invadiu a
igreja da Candelária, onde se realizava a missa de sétimo dia, com a presença
de milhares de estudantes. Em 21 de junho, a violência cresceu ainda mais no
Rio de Janeiro. Forças policiais reprimiram passeata estudantil que
reivindicava mais verbas para o ensino, restando um saldo de quatro mortos, num
episódio que foi registrado na imprensa como “sexta-feira sangrenta”. No dia 26 de junho, artistas, intelectuais,
religiosos, trabalhadores, estudantes, centenas de mães e a população de um
modo geral se uniram na “Passeata dos Cem
Mil”. Passeatas estudantis se repetiram em quase todos os estados do Brasil
naquele período. Em outubro, estudantes da USP, na rua Maria Antonia, enfrentaram
a polícia e alunos da Universidade Mackenzie, sede do Comando de Caça aos
Comunistas (CCC), resultando na morte de outro secundarista, José Guimarães. No
dia 12 de outubro, a polícia invadiu um sítio em Ibiúna, no interior se São
Paulo, onde se realizava, clandestinamente, o 30º Congresso da UNE, prendendo os participantes (quase 1.000
pessoas), incluindo-se aí a quase totalidade de suas lideranças estudantis nacionais.
No final daquele ano. O governo pediu licença ao Legislativo para
processar o deputado federal Márcio Moreira Alves, do MDB, que havia discursado
da tribuna da Câmara denunciando a violência policial e militar exercida contra
as passeatas estudantis. Mas o parlamento brasileiro não se curvou à exigência
e essa negativa foi utilizada pelo regime como pretexto final para a decretação
do AI-5, em 13 de dezembro. O AI-5 foi
considerado um verdadeiro “golpe dentro do golpe”. O Congresso Nacional foi
fechado, as cassações de mandatos foram retomadas, a imprensa passou a ser completamente
censurada, foram suspensos os direitos individuais, inclusive o de habeas-corpus.
O Conselho de Segurança Nacional teve seus poderes ampliados e a chamada "Linha
Dura" assumiu o controle completo no interior do regime. Essa era
composta por setores das três Armas que rejeitavam qualquer moderação ou
tolerância quanto às oposições. Nessa dinâmica, o governo tinha retirado até
mesmo lideranças políticas que foram grandes nomes da mobilização pela
deposição de João Goulart, como Carlos Lacerda e vários outros.
A partir daí, as ações de guerrilha urbana, já iniciadas antes do
AI-5, se volumaram nitidamente até setembro de 1969, quando o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick
significou uma desmoralização do poderio repressivo do regime e, ao mesmo tempo
uma convocação para que ele fosse redobrado.
Em setembro de 1969 o general Médici iniciou seu governo abrindo a
fase de repressão mais extremada em todo o ciclo de 21 anos do regime militar. A
partir de então, num clima de verdadeiro “terror
de Estado”, o regime lançou ofensiva fulminante sobre os grupos armados de
oposição, que tinham imposto uma derrota desmoralizante aos militares que
cederam no seqüestro do embaixador norte-americano, trocando-o pela libertação
de 15 prisioneiros políticos. Daí em diante concentrou seu fogo, em primeiro
lugar, contra as organizações que agiam nas grandes capitais: ALN, MR-8, PCBR,
Ala Vermelha, VPR, VAR-Palmares e muitas outras. Entre 1972 e 1974, combateu e
exterminou uma base guerrilheira que o PC do B mantinha em treinamento na
região do Araguaia desde 1966. Entre 1975 e 1976 aniquilou 11 integrantes do
Comitê Central do PCB e, em dezembro de 1976, cercou uma casa onde se reunia a
direção do PC do B, matando três dirigentes e prendendo quase toda a direção
daquele partido.
Num computo final, a violência repressiva não poupou as
organizações clandestinas que não tinham aderido à luta armada, e nem mesmo
religiosos que se opuseram ao regime sem filiação a qualquer organização. Os presídios
ficaram superlotados e as listas denunciando mortes sob torturas pularam de
algumas dezenas de opositores, em 1962, para várias centenas, em 1979, ano da
Anistia.
A temática dos Direitos Humanos, que antes da ditadura era um
elemento quase ausente na agenda política nacional, passa a representar um
ponto de vulnerabilidade do regime. Acumulam-se e se tornam cada vez mais confiáveis
as denúncias sobre torturas relatadas pelos presos que sobreviveram. Cresce o
desgaste da imagem do Brasil no exterior e, principalmente, a pressão que a
hierarquia da Igreja Católica exerce em torno do assunto.
No final de 1973, último ano de Médici, já estava evidente o
esgotamento do chamado “Milagre Brasileiro”, ciclo de cinco anos com forte
crescimento do PIB, e os grupos militares de origem castellista conseguiram
recuperam força, impondo Ernesto Geisel como próximo presidente. No momento de
sua posse, em março de 1974, os órgãos de repressão já tinham logrado êxito no
combate aos grupos de guerrilha urbana e desenvolviam a última campanha militar
de aniquilamento contra os militantes do PC do B no Araguaia.
Quando, o PCB se tornou o alvo principal do aparelho repressivo,
em 1974 e 1975, os órgãos de segurança eliminaram fisicamente a quase
totalidade de seu Comitê Central, sem fazer qualquer anúncio público. O regime manteve
completo silêncio sobre esses “desaparecimentos”...
A distensão
Ernesto Geisel assumiu a Presidência da República em março de
1974, anunciando um projeto de "distensão lenta, gradual e segura". Cinco anos
depois, ao transmitir o posto ao general João Baptista Figueiredo, entregaria
ao sucessor um regime ainda não democrático, mas onde a repressão política era
menos acentuada. Estaria abolido o AI-5, a liberdade de imprensa vinha sendo
devolvida aos poucos, as propostas de anistia eram debatidas abertamente e preparava
uma proposta de reforma partidária extinguindo o bipartidarismo forçado.
No entanto, é certo que nos três primeiros anos de Geisel, os
interrogatórios mediante tortura e a eliminação física dos opositores políticos
continuaram sendo rotina. O desaparecimento de presos políticos, que antes era
apenas uma parcela das mortes ocorridas, torna-se regra predominante para que
não ficasse estampada a contradição entre discurso de abertura e a repetição
sistemática das velhas notas oficiais simulando atropelamentos, tentativas de
fuga e falsos suicídios. Em outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado sob torturas no DOI-CODI de São
Paulo, valendo o episódio como gota d’água para que aflorasse um forte repúdio
da opinião pública, na imprensa e na sociedade civil como um todo, contra a
repetição de encenações aviltantes (“suicídio”) para tentar encobrir a
verdadeira rotina dos "porões" do regime. Três meses depois, no mesmo DOI-CODI de
São Paulo, é assassinado sob torturas o operário metalúrgico Manuel Fiel Filho,
sendo expedida, mais uma vez, nota oficial com a inacreditável versão de
suicídio. Mas, pela primeira vez na história do regime militar, o presidente
decide agir contra os porões e demite do Comando do II Exército o general Ednardo
D’Ávila Mello. Abre-se, então, um confronto claro entre Geisel e militares da
linha dura, que só terminaria com a queda de Sylvio Frota do comando do
Exército, em outubro do ano seguinte.
Antes disso, em abril de 1977, o regime militar volta a decretar o
fechamento do Congresso Nacional para editar o Pacote de Abril, conjunto de medidas para conter o fortalecimento do
MDB, que tinha colhido um surpreendente crescimento nas urnas em 1974.
Repete-se, assim, o expediente antidemocrático utilizado no ano anterior,
quando foi editada a Lei Falcão,
destinada a prejudicar os candidatos da oposição nas eleições municipais
daquele ano. O Pacote de Abril introduziu a absurda figura do senador biônico, empossado pelo regime
sem eleição alguma.
Apesar de todos os expedientes arbitrários, o governo militar sofreu
outro revés nas urnas de 1978, com novo salto no fortalecimento do MDB, partido
que nessa altura de sua trajetória contava com uma importante ala de
“autênticos”, designação assumida por deputados e senadores que denunciavam as
violações de Direitos Humanos e eram intransigentes no embate parlamentar
contra a Arena, sendo muitos deles ligados às lutas sindicais e populares que
vinham crescendo no cenário de abertura.
Em julho de 1977,
a cassação de mandato voltou a atingir a figura do líder
do MDB na Câmara dos Deputados. A violência do regime militar contra o deputado
paranaense Alencar Furtado era resposta ao pronunciamento feito por ele no programa
partidário do MDB, em cadeia nacional, quando abordou o tema dos desaparecidos
de maneira contundente: “Hoje, menos que ontem, ainda se denunciam prisões
arbitrárias, punições injustas e desaparecimento de cidadãos. O programa do MDB
defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana para que não haja lares
em prantos; filhos órfãos de pais vivos – quem sabe? Mortos talvez. Os órfãos do
talvez e do quem sabe. Para que não haja esposas que enviúvem com maridos
vivos, talvez, ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe e do talvez”.
Anistia e fim do regime militar
No âmbito político, 1979 é o ano da Anistia, que foi aprovada em
28 de agosto, envolvendo questões polêmicas como, por exemplo, incorporando uma interpretação política (e polêmica) do conceito jurídico de “crimes conexos” para beneficiar agentes do Estado envolvidos
na prática de torturas e assassinatos.
A Lei de Anistia possibilitou o retorno de lideranças políticas que
estavam exiladas, o que trouxe novo impulso ao processo de redemocratização.
Nesse mesmo ano, foi aprovada a reformulação política que deu origem ao sistema
partidário em vigência até os dias de hoje.
Desde 1978, no entanto, vinham se repetindo atentados a bomba,
invasões ou depredações de entidades de caráter oposicionista, jornais e mesmo
bancas de revista, cuja autoria sempre foi interpretada como só podendo caber
aos integrantes do aparelho de repressão.
Na medida em que, até hoje, nunca o Brasil foi informado oficialmente
sobre a verdadeira radiografia do aparato de repressão, incluindo dados sobre
sua história, estruturação interna, orçamento e, sobretudo, sobre as datas e
cronograma de seu desmantelamento ou reestruturação, ainda prevalecem
incertezas e interpretações discordantes a respeito de quem foram os responsáveis
por esses atos.
Em 30 de abril de 1981, parece ter se confirmado de forma
inequívoca a existência de algum tipo de braço clandestino da repressão ainda
operando plenamente. Dois membros do DOI-CODI do Rio de Janeiro sofreram um
acidente, quando preparavam atentado terrorista no Riocentro, durante um show de música popular em comemoração ao 1º
de Maio. A bomba explodiu no carro em que estava um capitão e um sargento,
ambos do Exército, morrendo um e ficando gravemente ferido o outro. O inquérito
instaurado pelo regime foi encerrado com conclusões absurdas pois o presidente João
Baptista Figueiredo não tinha força e não quis repetir, no caso, a atitude
firme de Geisel, cinco anos antes, no episódio Manuel Fiel Filho.
Nas eleições de 1982, que marcaram a estréia das novas siglas
partidárias – PMDB, PDS, PTB, PDT e PT –, as oposições conquistam o governo estadual
em vários estados, destacando-se São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A
sociedade brasileira queria mais. Entre novembro de 1983 e o abril de 1984, uma
grande pressão popular exigiu eleições diretas para presidente, mobilizando
milhões de pessoas em passeatas e comícios (1,5 milhão em São Paulo , por exemplo).
Essa campanha, conhecida como “Diretas
Já”, não logrou vitória na votação da Emenda Dante de Oliveira, mas apressou
o fim do regime militar.
No Colégio Eleitoral reunido em janeiro de 1985, o mineiro
Tancredo Neves foi eleito presidente, mas uma “grave enfermidade” impediu sua posse
vindo a falecer. Foi empossado o vice, José Sarney, senador do Maranhão que
havia pertencido à Arena, partido da ditadura.
Em maio desse ano os partidos comunistas foram legalizados, os analfabetos foram
admitidos na cidadania plena com o direito ao voto, algumas restrições da
Anistia de 1979 foram revisadas e abriu-se amplo debate sobre o caminho mais adequado
para que o Brasil pudesse finalmente escrever uma verdadeira Constituição
democrática. Promulgada outubro de 1988, a Carta que Ulisses Guimarães batizou
como “Constituição Cidadã” definiu o país como uma democracia representativa e participativa,
fixando, no artigo 1º, que o Estado Democrático de Direito tem como um de seus
fundamentos a dignidade da pessoa humana. O Brasil voltou às urnas em 1989 para
eleger livremente o presidente da República, pela primeira vez em quase 30
anos. O País mostrou-se capaz de superar gravíssimas crises políticas, como a
que levou ao impeachment do presidente Collor, em 1992.
Ao ingressar no século 21, o Brasil se revela portador de todos os
ingredientes de uma democracia política. Reúne, portanto, condições para superar
os desafios ainda restantes à efetivação de um robusto sistema de proteção aos
Direitos Humanos.