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domingo, 18 de dezembro de 2016

O Renascimento cultural e a criação do mito da Europa moderna

O Renascimento cultural e a criação do mito da Europa moderna

A inspiração dos renascentistas na Grécia e em Roma clássicas acabou por criar um mito de nascimento da Europa ocidental. Esse mito acabou por esconder as origens do próprio renascimento e ajudou a criar uma visão mitológica sobre a vida e os costumes nas cidades gregas e romanas.

Como os renascentistas se diziam inspirados na cultural greco-romana, eles negavam que a Idade Média tivesse alguma influência sobre o movimento. Mitificando a Grécia clássica como berço da filosofia e da própria Europa Moderna, como acabou por mistificar a História do período.

Hoje, sabe-se que a filosofia existia em regiões da Ásia (como a China) e da África muito antes da existência da Grécia Clássica. Também suas cidades não eram parecidas com a Europa, ou com o que virá-a-ser o “velho continente” nos séculos seguintes. Na realidade, as cidades gregas eram muito parecidas com as suas irmãs da Ásia Menor (costa oeste da atual Turquia).

Os costumes gregos também são mais próximos do mundo médio-oriental mediterrâneo do que com o mundo continental europeu. É interessante observar que a cultura grega antiga (chamada pelos próprios gregos de “helena”) é, muitas vezes, apresentada como mistura das tradições e culturas do médio-oriente apenas com a decadência da democracia e conquista macedônica, isto é, no período helenístico.

A mitificação da Grécia Clássica passou também por centrar seus estudos nas criações filosóficas-artísticas e no sistema democrático de governo (obviamente importantíssimos enquanto objeto de estudos), mas deixou de lado aspectos importantes da vida cotidiana das pessoas. Nesse sentido, conforme nos mostra Catherine Salles em “Os submundos da Antiguidade”, as cidades gregas eram locais de perdição, havia muita jogatina, bebedeiras, as famosas festas regadas a vinhos – em algumas delas, a festa só acabava quando a última pessoa caia de bêbada... Festas cheias de atos sexuais e outras formas de entorpecimento da psyché (pra ser bem discreto...) eram comuns.

Nas várias cidades gregas, havia diversas igrejas que usavam jovens (homens, mas principalmente mulheres) para, se prostituindo nas paredes externas dos templos, arrecadarem dinheiro para a instituição. Cidadãos gregos também usavam escravos para arrecadarem dinheiro (no entanto, era proibido pelas leis de Atenas, por exemplo, que um cidadão fosse colocado nessa condição, ou seja, uma criança ou jovem grega não podia ser usada para esse fim). Mas as crianças escravas isso era comum, e – por vezes – feita pelos próprios pais, a fim de garantir a sobrevivência da família. Algumas mães chegavam até a ensinar às filhas mulheres o dom de agradar um homem.

Outro aspecto do cotidiano pouco salientado era a influência que algumas prostitutas tinham sobre pessoas importantes da época democrática grega. O exemplo mais conhecido era de Laís, prostituta mais conhecida de Atenas.

Outras cidades Gregas clássicas também eram diferentes do que a imagem oficial passa delas. Por exemplo, Corinto era uma cidade portuária bem na passagem da Ática (onde ficava Atenas) e o Peloponeso (onde ficava Esparta), que atraía muitas pessoas com intenção de ganhar dinheiro lá. No entanto, a cidade era um ótimo lugar... para a pessoa chegar bem de vida e virar escrava, depois de perder tudo em jogos e prostituição.

Roma também foi mitificada. O centro da cidade era sujo, fedido e cheio de gente. Muitos senadores patrícios reclamavam nas sessões do Senado de ter que passar pela fedentina e multidão em meio ao cheiro de urina, gordura queimada (vinda das barracas de frituras) e dos corpos dos pobres que por lá ficavam. O “fascio littorio” era usado para passar nessa multidão...

O crescimento populacional em Roma fez a cidade ultrapassar os muros de proteção e outro foi construído mais adiante, no entorno da cidade. Os patrícios, cansados da agitação, de Roma chegaram a construir uma cidade há alguns quilômetros de Roma: Cápua; era usada para sair da agitação da capital.

Roma é muito conhecida por ter um extenso código de leis. Aliás, os romanos gostavam muito de legislar sobre os problemas e assuntos de sua civilização. Tanto que, até a suspensão da lei era legislada. Embora esse aspecto seja pouco lembrado hoje (Agamben faz uma referência a isso quando discute o “Homo sacer” e a vida nua), a suspensão das leis durante as festas pagãs, mais especificamente no “carnaval” romano, era algo que tornava a cidade um tanto quanto caótica (mas só por alguns dias...).

Esses e outros aspectos nada convencionais do dia-a-dia greco-romano ficaram esquecidos pela mitificação que o Renascimento criou sobre o mundo antigo clássico.

Nesse sentido, a negação da Idade Média como origem da Europa Moderna e sua busca numa época áurea se encaixam perfeitamente uma na outra.

Indicando as origens bárbaras da Europa Moderna, o medievalista Jacques Le Goff confrontou em várias de suas obras esse constructo intelectual que os renascentistas fizeram. Outro autor que será interessante para refletir sobre isso, é o sociólogo Norbert Elias, especialmente em sua obra “O Processo Civilizador”, no qual mostra a criação de manuais de “bons modos” para que os costumes bárbaros, tão frequentes nas pessoas europeias nos séculos XVII e XVIII, desaparecessem.

Por fim, podemos salientar que – ao apagar da História greco-romana as características da antiguidade que as ligavam ao mundo médio-oriental –, essa mitificação da Europa moderna é mais uma face de um profundo eurocentrismo que a civilização europeia difundiu ao longo de sua história e que, como tal, serviu de “padrão” para os costumes, as práticas, histórias e Histórias de outros povos do mundo.