O Renascimento cultural e a criação do mito
da Europa moderna
A inspiração dos renascentistas na Grécia e
em Roma clássicas acabou por criar um mito de nascimento da Europa ocidental.
Esse mito acabou por esconder as origens do próprio renascimento e ajudou a
criar uma visão mitológica sobre a vida e os costumes nas cidades gregas e
romanas.
Como os renascentistas se diziam inspirados
na cultural greco-romana, eles negavam que a Idade Média tivesse alguma
influência sobre o movimento. Mitificando a Grécia clássica como berço da
filosofia e da própria Europa Moderna, como acabou por mistificar a História do
período.
Hoje, sabe-se que a filosofia existia em
regiões da Ásia (como a China) e da África muito antes da existência da Grécia
Clássica. Também suas cidades não eram parecidas com a Europa, ou com o que
virá-a-ser o “velho continente” nos séculos seguintes. Na realidade, as cidades
gregas eram muito parecidas com as suas irmãs da Ásia Menor (costa oeste da
atual Turquia).
Os costumes gregos também são mais próximos
do mundo médio-oriental mediterrâneo do que com o mundo continental europeu. É interessante
observar que a cultura grega antiga (chamada pelos próprios gregos de “helena”) é, muitas vezes, apresentada
como mistura das tradições e culturas do médio-oriente apenas com a decadência da democracia e conquista
macedônica, isto é, no período helenístico.
A mitificação da Grécia Clássica passou também
por centrar seus estudos nas criações filosóficas-artísticas e no sistema
democrático de governo (obviamente importantíssimos enquanto objeto de estudos),
mas deixou de lado aspectos importantes da vida cotidiana das pessoas. Nesse sentido,
conforme nos mostra Catherine Salles em “Os submundos da Antiguidade”, as
cidades gregas eram locais de perdição, havia muita jogatina, bebedeiras, as
famosas festas regadas a vinhos – em algumas delas, a festa só acabava quando a
última pessoa caia de bêbada... Festas cheias de atos sexuais e outras formas
de entorpecimento da psyché (pra ser
bem discreto...) eram comuns.
Nas várias cidades gregas, havia diversas igrejas
que usavam jovens (homens, mas principalmente mulheres) para, se prostituindo
nas paredes externas dos templos, arrecadarem dinheiro para a instituição.
Cidadãos gregos também usavam escravos para arrecadarem dinheiro (no entanto,
era proibido pelas leis de Atenas, por exemplo, que um cidadão fosse colocado
nessa condição, ou seja, uma criança ou jovem grega não podia ser usada para
esse fim). Mas as crianças escravas isso era comum, e – por vezes – feita pelos
próprios pais, a fim de garantir a sobrevivência da família. Algumas mães
chegavam até a ensinar às filhas mulheres o dom de agradar um homem.
Outro aspecto do cotidiano pouco salientado era
a influência que algumas prostitutas tinham sobre pessoas importantes da época
democrática grega. O exemplo mais conhecido era de Laís, prostituta mais
conhecida de Atenas.
Outras cidades Gregas clássicas também eram diferentes
do que a imagem oficial passa delas. Por exemplo, Corinto era uma cidade
portuária bem na passagem da Ática (onde ficava Atenas) e o Peloponeso (onde
ficava Esparta), que atraía muitas pessoas com intenção de ganhar dinheiro lá.
No entanto, a cidade era um ótimo lugar... para a pessoa chegar bem de vida e
virar escrava, depois de perder tudo em jogos e prostituição.
Roma também foi mitificada. O centro da cidade
era sujo, fedido e cheio de gente. Muitos senadores patrícios reclamavam nas
sessões do Senado de ter que passar pela fedentina e multidão em meio ao cheiro
de urina, gordura queimada (vinda das barracas de frituras) e dos corpos dos
pobres que por lá ficavam. O “fascio littorio” era usado para passar nessa multidão...
O crescimento populacional
em Roma fez a cidade ultrapassar os muros de proteção e outro foi construído
mais adiante, no entorno da cidade. Os patrícios, cansados da agitação, de Roma
chegaram a construir uma cidade há alguns quilômetros de Roma: Cápua; era usada
para sair da agitação da capital.
Roma é muito
conhecida por ter um extenso código de leis. Aliás, os romanos gostavam muito
de legislar sobre os problemas e assuntos de sua civilização. Tanto que, até a
suspensão da lei era legislada. Embora esse aspecto seja pouco lembrado hoje
(Agamben faz uma referência a isso quando discute o “Homo sacer” e a vida nua),
a suspensão das leis durante as festas pagãs, mais especificamente no “carnaval”
romano, era algo que tornava a cidade um tanto quanto caótica (mas só por
alguns dias...).
Esses e outros
aspectos nada convencionais do dia-a-dia greco-romano ficaram esquecidos pela
mitificação que o Renascimento criou sobre o mundo antigo clássico.
Nesse sentido, a
negação da Idade Média como origem da Europa Moderna e sua busca numa época
áurea se encaixam perfeitamente uma na outra.
Indicando as
origens bárbaras da Europa Moderna, o medievalista Jacques Le Goff confrontou
em várias de suas obras esse constructo intelectual que os renascentistas
fizeram. Outro autor que será interessante para refletir sobre isso, é o
sociólogo Norbert Elias, especialmente em sua obra “O Processo Civilizador”, no
qual mostra a criação de manuais de “bons modos” para que os costumes bárbaros,
tão frequentes nas pessoas europeias nos séculos XVII e XVIII, desaparecessem.
Por fim, podemos salientar
que – ao apagar da História greco-romana as características da antiguidade que
as ligavam ao mundo médio-oriental –, essa mitificação da Europa moderna é mais
uma face de um profundo eurocentrismo que a civilização europeia difundiu ao longo
de sua história e que, como tal, serviu de “padrão” para os costumes, as
práticas, histórias e Histórias de outros povos do mundo.